domingo, 6 de dezembro de 2020

Mas há a mecessidade de escrever.

Em plena pandemia, número de mortos subindo, preso em casa há quase um ano, rotina de trabalho que se resume em ser sufocado por exigências e sufocar os alunos com outras exigências que, sem o apoio para realizar e sem o exemplo dos colegas, dificilmente são cumpridas, um dia-a-dia baseado em evitar contato com qualquer pessoa (se bem que eu já evitava antes…), mantive até agora uma horta e um pomar para evitar idas ao mercado em busca de vegetais frescos, e arranjei alguns minutos diários em busca por lazer. Se não para manter a sanidade mental, para evitar novos tipos de loucura.
E desses minutos de lazer veio a retomada do hábito de assistir animações. Acho uma boa ideia fazer resenhas do que já assisti, para evitar que me esqueça da impressão que causaram. A primeira que desejo resenhar é o desenho indicado pelo pastor Silas Malafaia. Eu realmente viveria normalmente sem saber de sua existência (o desenho, não o pastor), e acho ele uma coisa inútil ocupando um espaço precioso na TV para aumentar sua própria fortuna fazendo a vida de todos um pouco pior (o pastor, não o desenho). Mas, uma vez que fiquei sabendo do desenho e da polêmica que o envolve, o jeito é assistir e tirar minhas próprias conclusões, que seguem abaixo:
Star contra(?) as Forças do Mal:
É um desenho dos Estúdios Disney, o rato que devorou a Raposa do século XX. As “dark refferences”, uma espécie de marca registrada do estúdio estão lá. São uma jogada de marketing que dá muito certo, então lá vai a garota usar chifrinhos, namorar um sujeito do submundo chamado Lucitor, entre outras referências mais sutis, mas nem por isso inexistentes. Outra coisa a se notar logo na abertura do primeiro episódio: Estilo CalArts. Você pode amar ou odiar, mas o fato é: Fazer assim tem duas consequências básicas: Um bom computador e uma equipe reduzida conseguem produzir diversos episódios de animação no tempo em que uma equipe muito maior e equipamentos muito mais caros produziriam poucos segundos de uma animação em outro estilo. A segunda, também decorrente desse baixo custo e alta velocidade de produção: Uma criança de dois anos poderá ver várias figurinhas coloridas se mexendo na tela, sem que o pai precise reprisar o mesmo filme 983116879851x10^21676156 vezes, o que me parece bastante desejável. E ainda que o estilo “bonecos-palito que tomaram LSD e estão se achando” não te agrade, nesse caso, combina com a história e com o que eu imagino que seja o público-alvo primário, de crianças e pré-adolescentes no sul dos EUA. Por alguma razão, penso que crianças menores gostariam do visual, mas não entenderiam a “novelinha”.
Até porque o enredo tem alguns paradoxos estranhos. No primeiro episódio, a primeira coisa que a Star faz é quebrar a quarta parede: Ela sabe que está sendo assistida. E nunca mais fala disso.
Outro paradoxo do primeiro episódio: Ela recebe sua varinha no décimo quarto aniversário, em um dia aparentemente quente, de primavera ou verão. Mas seu décimo quinto aniversário não é comemorado, pois é dia do toco, um feriado anual em que somente a história do tal toco pode ser celebrada. E é inverno. Se as estações não são fixas, como são contados os anos? Como o dia do toco e o aniversário coincidem em um ano e não no outro? Por que diabos ela diz no dia do toco que nunca comemorou o aniversário, se quase explodiu o castelo na festa do ano anterior?
Milho
Todo mundo conhece milho: É o cereal mais produzido no mundo, mas não apenas isso: Ao contrário da soja, do arroz e do trigo, o milho só foi introduzido na dieta do europeu à partir do século XVI. Antes disso, nenhuma espiguinha, nada de pipoca, cuscuz, só de trigo. O milho é o fruto de milhares de anos de seleção artificial realizada, em maior parte, por povos nativos americanos, praticamente um símbolo do Novo Mundo.
No desenho, o milho é cultivado nas dimensões “da Terra” e “de Mewni”, dando a entender que a planta migrou de uma para a outra, juntamente com os primeiros colonos. MAS… Isso implicaria em dizer que o povo de Mewni é humano como os habitantes da Terra?
E aqui vem um ponto: Provavelmente, não. Os Mewnianos têm algumas habilidades não exibidas pelos terrícolas (ainda que você considere que a “Terra” do desenho segue Leis Físicas diferentes das nossas). Provavelmente, são o resultado de alguns séculos de hibridização com os chamados monstros, que poderiam ser chamados “mewnianos nativos”. Star e sua mãe podem assumir a forma de borboletas gigantes, uma criança plebeia rosna com uma boca redonda cercada de dentes pontiagudos, a distribuição de pêlos corporais quando alguns personagens ficam sem roupas (sim, tem disso. Não, isso não incomodou o Malafaia…). Está ocorrendo um processo de hibridização e de especiação nos mewnianos. Talvez eles não possam mais ser chamados humanos. Se é que algum dia foram, nada, além do milho, garante que eles vieram da Terra.
O milho também é um símbolo de tudo que os mewnianos podem ter e os monstros não. Serve para iniciar uma discussão sobre racismo fantástico que você pode ver aqui.
Magia
Maquiavel, talvez em sua frase mais famosa, garantia que a realeza deve ser amada e temida. Não podendo garantir ambos, temido é mais seguro que amado. O grupo de colonos que chegou a Mewni trazendo as primeiras sementes de milho foi agraciado com uma varinha, símbolo do poder real, e forma pela qual a realeza tem contato com a magia. Aqui vou usar a máxima de outro italiano, Galileu, e apenas “medir o que puder ser medido, contar o que pode ser contado e tornar mensurável o que ainda não é”. Não achei textos de apoio para as observações que tive, portanto tenho que fazer a ressalva que eu observei que:
  • Qualquer um que possua a varinha é capaz de conjurar magia, e esse é o principal motivo pelo qual a família Butterfly (que, aliás, é matriarcal) faz tudo que puder para mantê-la longe do alcance de outras pessoas.
  • Há um pequeno ritual para selecionar o efeito que a varinha exibirá, que consiste em um componente verbal e outro gestual. Uma vez selecionada a magia, parece ser suficiente pensar nela e apontar a varinha para que ela se repita.
  • Há diversos efeitos especiais para magias de dano, mas, aparentemente, todas elas causam atordoamento e pequenas contusões, não sendo possível conjurar uma magia da varinha para matar um inimigo em um único disparo, como se fosse um tiro.
  • Aliás, deve haver alguma espécie de código de honra entre os guerreiros de Mewni: Apenas a moralidade (e o fato de que o desenho é feito para crianças) permite compreender porque, uma vez que os inimigos são derrotados, devem admitir sua derrota e fugir, sem o risco de serem capturados, sem finalizações, sem pilhagens: Se todos caíram, devem levantar e voltar para a casa.
  • Star não tem interesse em dominar magia. Apesar de saber a importância do livro que acompanha a varinha, entrega o artefato como pagamento de uma aposta. Seu tutor é invocado pelo habitante da Terra quando ele precisa de ajuda e só não vai embora de forma definitiva porque decide não fazer isso.
  • Após alguns anos (aparentemente, um período de 14 anos, mas é possível que seja necessário apenas estar de posse da varinha ao passar pela mewberdade), o usuário de magia pode abrir mão da varinha e conjurar sem seu auxílio.
  • Há um minúsculo unicórnio vivendo na varinha. Sua vida depende de recargas constantes, e, aparentemente, ele exerce alguma função na conjuração de magias. Esse unicórnio pode ser exterminado com um feitiço, pode morrer de fome e pode enlouquecer. Ele é fluente em italiano, por algum motivo bem difícil de deduzir.
  • Ainda sobre o interior da varinha: Há, pelo menos duas seções de contínuo espaço-temporais diferentes que podem ser acessadas por ela: a “dimensão” em que o unicórnio vive e uma “dimensão” chamada apenas de “dentro da varinha”, moldada conforme novas memórias são acrescentadas ao objeto ou a seu usuário.
  • O livro que acompanha a varinha contém registros feitos por usuários anteriores sobre as possibilidades de usos do artefato. É possível espionar alguém, criar algumas espécies de golens, conjurar objetos, mover objetos, levitar, fazer fogo, etc. Alguns efeitos comuns da ficção, como curar doentes e feridos, apagar memórias, ressuscitar mortos, criar mortos-vivos, abrir portais dimensionais, criar um abrigo, etc. não parecem ser possíveis com a magia da varinha.
  • Também aparentemente, o dano causado pela magia em objetos pode ser revertido. Embora não apareça como isso é feito, é notável que as construções, objetos e veículos destruídos com magia retornam ao estado de novos (como pode ser verificado no episódio da estátua do gambá). Danos indiretos, por outro lado, podem ser mais difíceis de reverter, ou a Star não sabe como fazer isso.
Encurtando, até que é uma saga legal para acompanhar sem ficar entediado enquanto alguma criança assiste TV. Há algumas ideias estranhas, como o episódio em que Marco Dias envelhece 16 anos e volta ao seu corpo de 14, tendo agora, uma cabeça de 30 em um corpo de adolescente (meio que o oposto do que a gente vê nas ruas por aí…), coisa que também acontece com bebês, que, nesse caso, voltam para corpos incapazes de falar. Uma tortura, de qualquer forma. Ou a loucura por poder que leva à retomada do trono de Mewni, e, indiretamente, leva a protagonista a tentar a mesma estratégia que um dos vilões, pelos mesmos motivos que ele usava. Há, também, algumas ideias interessantes, como as viagens interdimensionais sendo feitas por meio de tesouras, ou as diferentes formas de passagem e medida do Espaço-Tempo, uma separação entre o que seriam planos de existência dentro de um mesmo universo e os diversos multiversos, cada qual com seus planos de existência, as analogias entre o universo fantástico e o real, embora eu realmente deva ter entendido errado a relação entre o universo da magia e os efeitos da maconha, e o misterioso final do episódio da varinha bananágica. Dá para lamentar que a maioria das subtramas passará despercebida pelo público-alvo, apesar de que tudo leva a crer que, sim, a intenção era essa: Você vê o que está preparado para ver. E talvez esse seja o toque de “magia” que o estúdio se propõe a colocar nas suas obras.